A atual histeria coletiva em relação ao cigarro é algo extremamente irritante. Acredito que tanto fumantes como não-fumantes podem desfrutar do mesmo mundo. É claro que ambos merecem respeito, ou seja, se você tem o direito de não gostar e não querer fumar, eu tenho direito de gostar e querer. Esse rótulo piegas de “vilão máximo da humanidade” que o cigarro ganhou de alguns anos pra cá é tão cansativo e torna os antitabagistas tão intolerantes que faz com que os pobres coitados dos fumantes sejam marginalizados e vistos como alienígenas, criminosos. Por isso resolvi transcrever aqui trechos de um artigo da Laura Capriglione muito interessante, publicado pela Veja em 1996 (e olha que naquela época fumar ainda era permitido). O título era “O direito à intoxicação”:
Eles – os cientistas, os médicos, os familiares, os amigos, em suma, os não fumantes – acham que fumar é um vício sujo cujo núcleo consiste em levar nicotina ao cérebro, propiciando um determinado tipo de reação físico-química. Eles estão por fora, os não fumantes, achando que cigarro é prosa. Cigarro é poesia. Fumar é apalpar em desespero o bolso ou a bolsa, até sentir a forma amada que nos acalma. (...)
É fechar os olhos e ficar em paz, com a bênção dos deuses do fumo. É depois abrir os olhos, e soprar, soprar para cima, contemplar a fumaça que sobe, sobre, a vida que se desmaterializa numa nuvem azul – e novamente tragar. Fumar é um ritual. O cigarro tem uma cultura e uma história.
Quando se quer convencer alguém a abandonar o cigarro, não basta brandir argumentos médicos, denunciar os ganhos da indústria do tabaco à custa da saúde alheia. É preciso, ainda, desmontar as imagens inebriantes da cultura do cigarro. Das imagens, do discurso do fumo, fazem parte Humphrey Bogart tragando no aeroporto de Casablanca, dizendo adeus para sempre a Ingrid Bergman, Jean-Paul Sartre fumando no Café de Flore durante o Maio de 68 parisiense, e Rita Hayworth, de piteira, exalando lascívia em Gilda. Emblemas da cultura do cigarro, Bogart, Sartre e Hayworth identificaram ao fumo comportamentos bem nítidos. Bogart, o machão de alma romântica, associou ao fumo o vício da solidão. Sartre, vesgo e baixinho, deu à fumaça uma aura de existencialismo, de pensamento e rebeldia. E Rita Hayworth associou para sempre cigarro a devassidão, maus costumes, erotismo. A mulher fatal fuma, assim como o aventureiro e o filósofo inconformista. O cigarro, assim, não é coisa de bocós que cultuam o corpo nem de mocinhas inocentes. É coisa de gente experiente. De gente que topa gastar o corpo rápido para melhor aproveitá-lo. Cigarro é coisa de pecadores. Daí o seu fascínio. A beleza do cigarro não é solar e saudável, racional e reveladora. É noturna, doente, suja, compulsiva, neurótica.
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É de subversão aos bons costumes que se trata, quando se fala em cigarros. É reação puritana, envernizada por teorias científicas, a grita histérica contra o tabaco nos dias que correm. O historiador americano Richard Klein, em seu livro Os Cigarros São Sublimes, ilustra esse fato ao mostrar que sempre que se lutou pela pátria, pela revolução, pela conquista de algum direito, as nuvens negras do cigarro estiveram presentes. Um dos episódios mais célebres da independência americana, quando os colonos lançaram ao mar mercadorias taxadas em excesso pela coroa britânica, envolveu o tabaco, submerso em grandes fardos junto a lotes de chá, as chamadas “Tea Party”. Nas guerras, já o disse o general John Joseph Pershing, chefe da Força Expedicionária americana durante a I Guerra Mundial, o cigarro é tão imprescindível no front quanto as balas, para ganhar a batalha. Nas barricadas de Maio de 68, na França, durante a revolta dos estudantes e operários, o cigarro era a companhia inevitável.
Vitaminas e Academias – Pode-se argumentar que a atmosfera fumacenta decorre da ansiedade que envolve o indivíduo nesses momentos cruciais. É apenas parte da verdade. A nicotina é poderoso lenitivo contra a angústia, sem ser um estupefaciante, como outras drogas. Mas, antes de assumir que todos os soldados de todas as causas não passam de vítimas de seus comandantes, que tal pensá-los como pessoas que resolveram dar-se ao luxo de morrer, física ou moralmente, pelo que acreditam correto? Nessa perspectiva, o cigarro ganha a dignidade de um companheiro inseparável, confidente mudo das abissais angústias. Só indivíduos que não ficam o tempo inteiro pensando em como preservar a própria saúde têm a coragem de enfrentar o inimigo que está na esquina. Quem pensaria, nessas circunstâncias, em vitaminas e academias de musculação?
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Os antitabagistas de hoje usam argumentos sanitaristas para proscrever os fumantes. Julgam-se tributários dos avanços recentes da medicina e tentam a todo custo evitar a pecha de moralistas, já lançada contra eles antes, quando insistiam em perseguir pelas ruas, aos gritos de “prostituta!, leviana!”, as mulheres que fumavam. Mas é a mesma recusa ao prazer que faz com que o cigarro seja lançado no limbo dos infernos, transformado em grande Satã contemporâneo. Que faz com que se busque o sexo tão seguro que acaba por abolir o sexo. Que impede que alguém mergulhe sem culpa num belo prato de comida. Que lança anátemas contra quem se refestela numa rede, quando deveria estar malhando numa academia.
Fumar, nessa perspectiva, pode ser uma resistência à repressão, ao massacre dos impulsos organizado pela civilização. Uma resistência ambígua, pois feita de auto-aniquilação, de morte. O fumante, cada vez mais, sabe que o cigarro o está matando. “Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando”, resiste o poeta Fernando Pessoa, sob a máscara de Álvaro de Campos, em Tabacaria. Sigmund Freud, em O Mal-Estar na Civilização (também conhecido no Brasil como A Civilização e Seus Descontentes), em 1929, escreveu que “a vida, tal como nós a encontramos, é muito dura e disso decorrem descontentamento e dores. Não passamos sem paliativos, substâncias intoxicantes que nos tornem insensíveis. Elas são imprescindíveis”, diz Freud, fumante de vinte charutos por dia, charutos que ajudaram a desenvolver o câncer no maxilar que o matou, sabia que o fumo era um desses paliativos, dessas substâncias intoxicantes que nos servem de apoio para atravessar a vida. Querer erradicar o cigarro é uma ilusão, é achar que a humanidade almeja o bom e o bem, racionalmente. E é, talvez, querer destruir aquilo que a humanidade tem de mais belo: a capacidade de criar um objeto que, injetando fumaça corpo adentro, nos ajuda a viver e morrer. Sem cigarro, é difícil aturar a realidade.
Revista Veja, 29/05/1996