Como estou voltando para Brasília depois de um breve período de férias, resolvi postar aqui uma crônica do Rogério Menezes publicada há alguns anos no Correio Braziliense. Como me identifiquei instantaneamente, guardei aquela página do jornal. Outro dia achei o recorte no meio das minhas coisas e eis que o transcrevo aqui:
Crônica da Cidade
Por Rogério Menezes
Correio Braziliense 18/11/2002
Automóveis e homens
Perdão pelo lugar-comum, pelo déjà-vu do assunto, mas preciso voltar ao tema: Brasília privilegia automóveis. Não homens. Com pistas-de-alta-velocidade-que-parecem-aqueles-autoramas-das-infâncias-mais-remotas, ainda que reduzidas pela voracidade dos pardais sempre alertas, sempre implacáveis, esta capital federal é dos automóveis. Como a lua é dos namorados. Ponto.
Andarilho contumaz pela região central de Brasília, costumo cruzar mais, infinitamente mais, com automóveis do que com homens. Ao caminhar pela margem lateral do Eixo Momumental, um trecho que vai deste jornal até as imediações do Pátio Brasil Shopping, percurso que faço com certa regularidade, constato a implacável solidão dos que andam a pé em Brasília. Parece ser a mesma solidão implacável dos que andam (e pregam) nos desertos.
Ao caminhar em passo lento ao lado de automóveis que passam em alta velocidade sinto, admito, certa vergonha. Certa fragilidade. Certo desconforto. Certo mal-estar. Como se fosse um marginal. Um pária. Um alienígena. Um gauche-na-vida (se bem que seja, de fato, admito de novo, uma soma disso tudo). Tanto que tento evitar o olhar, se é que haverá algum, dos motoristas dos carros que circulam ao redor a toda velovidade.
Temo ler no olhar deles algo assim: - O que esse maluco estará fazendo sozinho e a pé nesta cidade que pertence aos automóveis e a mais ninguém?
Eventualmente capto certa raiva dos automóveis (melhor: dos motoristas que os conduzem) em relação a mim. É quando, na bucólica solidão verdejante do Parque da Cidade, surjo assim, do meio do nada e, estacionado à margem de alguma faixa de pedestre, levanto a mão sinalizando que atravessarei a pista.
Aí, quando sou obrigado a olhar para os carros e, conseqüentemente, para os motoristas que os conduzem, tentando perceber, com algum grau de precisão, se chegarei vivo ou não ao outro lado da pista, flagro olhares de desprezo, de raiva, e até mesmo de piedade.
Aí, nesses momentos, leio pensamentos assim: - De onde saiu esse pobre-diabo? Será que esse pobre-diabo não teme que algum motorista mais apressado ignore o sinal de mão dele e o transforme em massa disforme imiscuída no asfalto negro?
Aí, após essa fugaz troca de olhares, atravesso a pista, morrendo de medo que o motorista mude de idéia e me atropele (afinal de contas será crime sem testemunhas; Brasília é, em alguns lugares, cidade-sem-testemunhas).
Aí, ao chegar no outro lado da pista, constato: - Bom. Sobrevivi.
Aí, sigo em frente - e em paz. Pelo menos até que outro automóvel veloz surja de algum lugar e acabe com tudo.
Crônica da Cidade
Por Rogério Menezes
Correio Braziliense 18/11/2002
Automóveis e homens
Perdão pelo lugar-comum, pelo déjà-vu do assunto, mas preciso voltar ao tema: Brasília privilegia automóveis. Não homens. Com pistas-de-alta-velocidade-que-parecem-aqueles-autoramas-das-infâncias-mais-remotas, ainda que reduzidas pela voracidade dos pardais sempre alertas, sempre implacáveis, esta capital federal é dos automóveis. Como a lua é dos namorados. Ponto.
Andarilho contumaz pela região central de Brasília, costumo cruzar mais, infinitamente mais, com automóveis do que com homens. Ao caminhar pela margem lateral do Eixo Momumental, um trecho que vai deste jornal até as imediações do Pátio Brasil Shopping, percurso que faço com certa regularidade, constato a implacável solidão dos que andam a pé em Brasília. Parece ser a mesma solidão implacável dos que andam (e pregam) nos desertos.
Ao caminhar em passo lento ao lado de automóveis que passam em alta velocidade sinto, admito, certa vergonha. Certa fragilidade. Certo desconforto. Certo mal-estar. Como se fosse um marginal. Um pária. Um alienígena. Um gauche-na-vida (se bem que seja, de fato, admito de novo, uma soma disso tudo). Tanto que tento evitar o olhar, se é que haverá algum, dos motoristas dos carros que circulam ao redor a toda velovidade.
Temo ler no olhar deles algo assim: - O que esse maluco estará fazendo sozinho e a pé nesta cidade que pertence aos automóveis e a mais ninguém?
Eventualmente capto certa raiva dos automóveis (melhor: dos motoristas que os conduzem) em relação a mim. É quando, na bucólica solidão verdejante do Parque da Cidade, surjo assim, do meio do nada e, estacionado à margem de alguma faixa de pedestre, levanto a mão sinalizando que atravessarei a pista.
Aí, quando sou obrigado a olhar para os carros e, conseqüentemente, para os motoristas que os conduzem, tentando perceber, com algum grau de precisão, se chegarei vivo ou não ao outro lado da pista, flagro olhares de desprezo, de raiva, e até mesmo de piedade.
Aí, nesses momentos, leio pensamentos assim: - De onde saiu esse pobre-diabo? Será que esse pobre-diabo não teme que algum motorista mais apressado ignore o sinal de mão dele e o transforme em massa disforme imiscuída no asfalto negro?
Aí, após essa fugaz troca de olhares, atravesso a pista, morrendo de medo que o motorista mude de idéia e me atropele (afinal de contas será crime sem testemunhas; Brasília é, em alguns lugares, cidade-sem-testemunhas).
Aí, ao chegar no outro lado da pista, constato: - Bom. Sobrevivi.
Aí, sigo em frente - e em paz. Pelo menos até que outro automóvel veloz surja de algum lugar e acabe com tudo.